terça-feira, novembro 14, 2006

Praias de um tempo imaginado



O cheiro a sargaço pairava naqueles finais de manhã em que o sol prometia calor, bom tempo... À medida que ele ia descendo pelas escarpadas escadas, uma verdadeira conquista à arriba que abrigava aquele areal cheio de curiosas rochas - afloramentos do mundo subaquático em maré-baixa -, o frio na barriga e o nó no estômago cresciam, aumentavam de intensidade. Por um lado, era essa expectativa de mais um dia de praia, de brincadeiras, de descobertas, de afronta ao Oceano que lhe parecia querer tomá-lo como seu único confidente. Por outro, a vertigem, uma vontade de ser incluído naquele cenário que parecia engoli-lo. O prazer em arriscar, na aventura, de se superar ainda hoje é vivido com esse misto de respeito e vontade de ser uno com a natureza que o rodeia - um epicurismo animista que busca a construção intelectual dessa ideia de harmonia que traz a paz e a serenidade.

Tudo provavelmente terá começado ali - o gosto pelo Verão, pelo Sol, pelo som das ondas, pela sua fúria respeitosa mas desafiante.

Das memórias que vai guardando e recriando por cada nova e repetitiva visita aos álbuns de fotografias (tiradas pelo seu pai com uma sacrossanta Yashica, máquina preciosa com lentes topo de gama para altura - uma espécie de investimento que sempre ficaria para os filhos), um tanto ou quanto poeirentos e amarelados (os álbuns), que conservam um perene e silencioso lugar na sua escrivaninha de traços hindo-portugueses, ele tem como nítida aquela imagem em que os seus pais começavam a abrir um buraco na areia para poder fixar o enorme guarda-sol azul eléctrico (com "saia" - como aprendeu depois): o lugar estaria reclamado assim que o abrissem, pousando depois uma lancheira frigorífica, também azul, onde estavam guardadas umas sandes, uns iogurtes Vigor e uns sumos. Não deixa de ser curioso: nunca mais o sabor daquele queijo flamengo, o aroma de laranja de um verdadeiro Sumol, ou até mesmo de um paternal fois-grás (que vinha numas embalagens que faziam lembrar bisnagas de pasta dentífrica) fizeram parte da sua vida.

Entenda-se, no entanto: tal facto não é tido como uma perda, mas sim como a conquista do seu imaginário, do seu viver nostálgico - que não melancólico.

Depois, vinham os baldes, as pás, mas disso não ele não tem lembranças detalhadas.

Tem, isso sim, de contemplar as formações rochosas que estavam a descoberto naquelas tais marés baixas, enquanto o mar mais à frente rugia, chamando-o. As algas eram escorregadias, estavam molhadas e, nalgumas pequenas piscinas, descobria pequenas conchas, buzios e camarões.

De facto, eram tempos simples, em que, depois da sesta no areal que à tarde era apenas da família, não havendo mais ninguém na praia, as noites se passavam numa cadência própria, em carrosséis de Citroens Bocas-de-Sapo-miniaturas, onde, pagando uma verde nota de vinte escudos (o Bocage era a figura histórica representada) a um senhor de cabelos brancos que saía de uma cabine ao centro da pista, lhe eram proporcionados momentos de verdadeiro prazer automobilístico e, quiçá, velocístico a fingir.

Ao acabarem as férias voltava para a sua casa de sempre e do cheiro a fechado ainda hoje se recorda com perfeição. Ainda não andava na escola, na creche isso sim, por isso o regresso às aulas não era uma preocupação consciente. Estava contente por estar contente e isso bastava-lhe. De resto, até tinha tomado uns bons banhos de mar, provado a água salgada do mar e trazido alguns búzios que traziam aquele barulho mágico lá dentro bem escondido.

Aos três, quatro, cinco anos é tanto quanto basta.

Uma memória de outros tempos estivais, que se ouviu, por estes dias à beira da Catedral.

1 comentário:

Anónimo disse...

Podes ter a certeza de uma coisa: SINTO PRECISAMENTE A MESMA COISA! e QUANDO ENCONTRAMOS A PERFEIÇÃO, A ELA NOS RENDEMOS, NÃO HAVENDO NECESSIDADE DE MAIS PALAVRAS!!!