terça-feira, abril 15, 2008

Puro Vintage II


Contra a folha de papel azul, sempre escolhida para coisas sérias, os caracteres iam sendo impressos, ao som ocluso que o batimento das teclas provocava. Ao chegar ao fim da linha, previamente marginada, um sinal sonoro estridente marcava a obrigação de "dar à alavanca" - uma rude tecla "Enter", muito mais grave e que se impunha por si própria -, fazendo o cursor mecânico posicionar-se imediatamente mais abaixo. Um movimento do rolo, dois ou três espaçamentos e lá recomeçava.
"Em regime de compropriedade com seu irmão..." e outros termos que tais, por ali iam ficando, dando a vinte e cinco linhas, a estampilhas e a selos brancos, a sua essência e verdadeiro propósito.
E se nos tempos livres, a esforçada, mas douta e sábia matrona, proprietária daquela Remington - uma verdadeira maravilha da técnica -, pensava em dar-lhe uso para os prazeres de uma escrita mais livre, o certo é que o tempo lhe ia sempre faltando.
No meio de colinas, vales e montes - daqueles que ficam "a-Trás" de outros tantos, os chamados por esse mesmo nome -, antigos feudos e morgadios fraccionavam-se, vendiam-se e compravam-se.
O movimento e o volume de serviço naquele Cartório podiam não ser comparáveis aos de um outro qualquer, no Porto, ou mesmo em Lisboa, mas dava para que, todos os dias, o expediente viesse sempre a encontrar o seu termo a horas incertas.
E assim, na fita de duas cores - preto e vermelho -, maiúsculas e minúsculas letras formavam palavras que se queriam solenes.
No final de contas, frases como "Exercendo a sua posse, há mais de quinze, vinte, vinte e cinco, trinta anos...", davam a definitiva certeza àqueles que sempre tinham amanhado, com tributos de suor e sangue, os torrões de terra do seu sustento, confiando numa divina providência que lhes trouxesse apenas quatro estações, conformes aos dizeres e aos usos de anos desejavelmente sempre iguais, desde um tempo há muito ido, bem antigo.
Ao termo dessas folhas, aprovadas por uma qualquer portaria da Presidência do Conselho, a linha para a rubrica e assinaturas.
Nos rostos dos adquirentes, assim presumidos, porque presuntivos os seus actos, a certeza de que o "uso campeão" um maior sossego lhes traria - o que está escrito, escrito está, sempre se disse -, a certeza, essa, nascia num tímido, mas franco sorriso.
Tudo assinado conforme os termos, tudo conferido e tudo pago, mais um dia tinha passado.
Num gesto prático e mecânico, a Ilustre Notária puxava da tampa de rígido plástico e declarava encerrado mais um exercício daquela sua máquina de escrever.
Sempre prazerosa, sabia ter chegado ao fim de mais um dia com o dever cumprido. Ainda que já com a Lua bem alta.
Photoshopianice da Mariana.

5 comentários:

Sub-Lodo disse...

Excelente e uma salva de palmas para a Remington! Abre uma edição de "posts pedidos". Já está? Então vou fazer o meu pedido: um post sobre as caixas registadoras antigas, de manivela! Pronto.

Anónimo disse...

A Remington agradece, penhorada, porque reconhecida. Essa das caixas registadoras... Que bela ideia! O pedido será satisfeito, numa próxima edição do Puro Vintage. Um Grande Abraço!

Anónimo disse...

Realmente, Sub-lodo, é uma bela ideia. O Avenida, na Afonso Henriques, ainda tem uma dessas em funcionamento.

Já agora, ainda tens a grafonola?

Anónimo disse...

Tenho a grafonola ao pé do piano, mas apenas funcionou algumas vezes, durante a minha meninice.

Anónimo disse...

Ambos são objectos dignos de um momento vintage.