sexta-feira, julho 25, 2008

Puro Vintage IV


Pelo começo do Verão, à chegada da sardinha assada - que, desde sempre, fazia as delícias dos fiéis que prestavam culto ao três santos mais porreiros, porque populares -, Pedrito sabia que estava para breve.
No café do senhor Antunes, o momento adquiria, de facto, bastante solenidade, a principiar pela chegada do fornecedor que saía da carrinha frigorífica com um ar de poucos amigos e imbuído do espírito de sacrificado proletário.
Depois, com a ajuda do já referido proprietário hoteleiro, principal interessado na encomenda, ambos arrumavam as caixas de cartão dentro da arca congeladora de sempre - fundo branco e riscas vermelhas, com um logotipo azul, podendo ler-se a palavra de saudação mais traduzida em todo o mundo, ali tornada marca comercial.
Tudo devia ficar bem acondicionado para que, durante três meses, nada se estragasse ou partisse.
Por fim, conferidas as guias e facturas, o fornecedor retornava à sua carrinha para ir buscar o devido brinde e adereço publicitário mais aguardado - a nova carta dos gelados!
Pedrito e os seus amigos nunca se cansavam deste rito anual, típico da altura do estio, satisfazendo logo ali, em jeito contemplativo, uma curiosidade que prenunciava belas tardes, conseguidas, certamente, com algum custo.
Na verdade, era preciso ser-se bonzinho, portar-se bem; fazer todos os recados que os pais lhes ordenassem. No fim, a recompensa, contudo, lá chegava. "Toma lá dinheiro para ires comer um gelado" - a frase que melhor sabia ouvir.
No final do primeiro mês, seguindo as gravuras apreçadas na tal carta, colocada em expositor junto da arca, cada um dos amigos de Pedrito, ia conferindo quais as novidades já experimentadas e saboreadas, dando conta da falta de outras tantas ainda a carecer de verdadeira e entendida prova. Dentro em pouco chegaria Setembro - já depois da praia - e os ares de escola, realmente, não tinham muito que ver com estes devaneios.
Para Pedrito, as suas prioridades eram simples. Por entre sorvetes de água, gelo com aromas de morango, limão e cola - ideais para tardes passadas à beira de piscinas descobertas e perdidas ao tórrido sol (mesmo ali ao fundo do bairro) -, Pedrito, miúdo de hábitos muito próprios, já tinha votado no seu predilecto.
Ao rasgar, no topo, a folha de papel e tirando a pequena tampa circular que o cobria, logo ali estava aquele seu cone recheado, pronto a fazer as suas delícias. Primeiro vinha o amendoim, estaladiço e torrado, depois, inevitavelmente, as natas frias e aquele glacial e crocante chocolate de leite. Ao chegar já à parte da bolacha de baunilha - melhor ainda que a sua congénere "americana" - o tempo era de fazer render e poupar, porque logo depois o momento de inocente e alegre prazer chegaria ao fim.
Por vezes, a testa ficava fria, numa leve dor provocada pela sofreguidão que levava ao choque térmico. Contudo, também isso passava numa breve pausa e mais uma dentada era desferida com entusiasmo redobrado.
Ao mesmo tempo, entre os convivas de palmo e meio, falava-se de aventuras, caças ao tesouro, mistérios sobre mouras encantadas ou façanhas de "cowboys" e corridas de bicicleta, intercaladas por alguns toques de bola e troca de cromos.
Para Pedrito, os dias eram grandes como as férias - a viver repletas de pequenos e refrescantes prazeres que, ainda assim, não saciavam tal sede de pura Felicidade.


Um clássico contemporâneo dedicado ao Verão e um tributo aos mistérios de outros tempos.

5 comentários:

Anónimo disse...

O melhor era o Epá, especialmente porque não corrias o risco de ficar com as mãos sujas por o gelado derreter.

Passiflora Maré disse...

Belo texto e quanta saudade, desses tempos em que tudo era novidade, curiosidade, aventura, excitação...
Tem graça Mariana, que também eu sofria dessa fobia das mãos pegajosas e escolhia muitas vezes o Epá, ás vezes com barriga para outros!!!
Escolhas...
BJ.

Anónimo disse...

Ao menos o Epá era mais saudável que o Calipo.

Passiflora Maré disse...

Achei-lhe graça, Mariana, porque pelas minhas contas eu tenho, pelo menos, mais quinze anos que V. e ambas nos lembramos do Calipo.
A questão que se me colocou foi se a lembrança tinha a mesma morada.
A minha lembrança dos calipos fica no cimo das monumentais, ao pé da estátua do D. Dinis, num triciclo ambulante de venda de gelados.
Fique bem.

Anónimo disse...

Quinze anos, de facto, correspondem a muita experiência acumulada.

Quanto a memórias, de calipos não as tenho porque, como disse, os gelados de água não são saudáveis.